quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Ode ao Amor Morto

Era uma vez uma sexta-feira. Como tantas outras. Várias. Muitas. Deitados, nós dois, cansados da semana, cansados, suados, tarde, seu rosto no meu peito, meus dedos nos seus cabelos... por que era assim? Por que tinha que ser assim? Sempre. Amor. Sempre... porque desde o início era um caminho mais forte do que nós. E que nos obrigava, visceralmente, a caminhar apenas por ele. Mesmo que não houvesse um final de trajeto tão claro, um ponto que se pudesse vislumbrar como de chegada, mesmo assim sempre estávamos lá, caminhando.   

- Você precisa ir embora já?
- Hoje não. Ela está na casa da mãe, com as meninas. Acho que vão dormir lá.

Acendemos um cigarro. Alguns instantes de completo silêncio. Aos poucos, onde antes havia apenas o desejo, a razão começa a voltar. Quase sempre era assim. Não era um sentimento ruim, de culpa pelo que sentíamos um pelo outro. Não, não era isso. Há tempos não havia mais dúvida que nos amávamos.

- Posso te fazer uma pergunta?
- Se eu puder responder...
- Até quando vai ser assim?
- Assim como?
- Assim... a gente, nós assim, aqui, num motel. Amanhã e depois, tendo cuidado se der saudades e tiver que falar com você, na sua casa. Até quando vamos ser “amigos”?
- ... não sei.
- Nem quer pensar a respeito?
- E você acha que não penso?!
- Tá. Desculpe...
- Quando estou em casa, dormindo com ela, me sinto tão canalha!
- Sei como é. É disso que eu falo. Até quando continuaremos com isso?
- Será que estamos fazendo tudo errado?
- Errado o que? O que sentimos?
- Não o que sentimos! Errado, estar enganando, traindo...

..........

Tragédia. Do grego: tragos (bode) e odé (canto), tragosoiodé, literalmente “canto dos bodes”. Narrativa dramática da Grécia antiga, cuja origem, muito provavelmente, remonta aos cânticos religiosos em honra ao deus Dionísio (Baco, para os romanos). No formato clássico, a marca essencial da tragédia está em que os protagonistas centrais sabem, ou intuem, desde o começo, o final triste que encerrará o episódio.

Luta contra o destino? Cegueira da razão? Punição?

12 anos atrás. Não 12 horas, ou 12 dias. Vivíamos, existíamos, na integridade de todos os aspectos de nós mesmos. Éramos o sombrio e o luminoso, o alegre e o doloroso, o desfalecimento e a exaltação. Criação e destruição. Acreditávamos numa inocência, sem considerar o mal e o sofrimento possíveis. Éramos assim, eram assim as coisas entre nós. Alternância de êxtases e lucidez. E que terminou... não vale a pena lembrar de tudo.

Objetivamente: num dos momentos de maior coragem, que eu jamais supus possuir, ele se acovardou. Simples. Era direito dele. Hoje eu sei e entendo. Era o ponto de inflexão da nossa tragédia. Daí por diante, todos os sonhos, os nossos, aqueles sussurrados, sôfregos, abertos, aqueles em que mergulhávamos em nossas profundezas, todos viraram fumaça! Pó.

..........

10 anos

No fundo do café, quase não o reconheço. Está mais magro, os cabelos começam a ficar grisalhos. Os olhos... aqueles que (ainda hoje não sei), me tornaram refém desde o primeiro instante em que os fitei... os olhos dele estão, apagados, sem brilho. Ou seriam os meus, que não brilham mais ao ver os seus?

Antes de me sentar à mesa, diante dele, pensei em várias coisas, nas várias reações que eu poderia ter. Ou naquelas que eu precisaria ter. Como sempre, de nada valeram meus pensamentos. Tudo acabou sendo no fluir natural das sensações e do instinto. O que eu senti? Raiva? Pena? Saudade? Vontade? Nada! Pó.

Foi a última vez que o vi. Pelo menos tão perto que, se eu quisesse, poderia tocá-lo.

..........   

2 anos

- Lu... tudo bem? Pode falar um pouquinho?
- Tudo. E você?
- Desculpe... eu só queria ouvir a sua voz...
- E aí, como estão as coisas?
- Eu parei aqui no ponto. O movimento tá meio fraco essa hora. Acho que não te contei... to trabalhando com taxi agora...

(Eu devo ter ficado alguns segundos... longos segundos... pensando: é, o destino não está sendo muito bom com nenhum de nós!)

- E você? Tá trabalhando?
- Por enquanto, só com algumas aulas. Complicado, né!
- Você mora no mesmo lugar?
- Não

(Pensando bem, até que o destino foi menos mau comigo...)

- E as suas meninas?
- Ah, já casaram! Sem netos, por enquanto...
- E a...
- Quase nunca nos vemos. Só quando calha, na casa de uma das meninas. E você?
- Tudo bem. Continuamos muito amigos. É muito forte a nossa ligação. Se não acabou naquela época... acho que vai até o fim, agora.
- Bom...

(Silêncio. Por dentro, não tem como, algo se remexe em mim. Dizem que certos vírus, mesmo depois de debelados, não se sabe bem se pelos anticorpos, ou se pela marca sorológica, ainda podem, depois de muito tempo, manifestar algum sintoma. Será? Não creio. Não quero crer.)

- O meu número ainda é o mesmo... pensei... quem sabe alguma hora podíamos tomar um café...
- Pode ser. Qualquer dia marcamos.
- Bem, era isso. Só queria te ouvir. Tem horas que... é tão difícil... você tá bem?
- Sim, tranquilo!
- Tá bom então. Posso esperar uma ligação sua?
- Quem sabe... boa sorte aí!

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“O amor nunca morre de morte natural. Ele morre porque nós não sabemos como renovar a sua fonte. Morre de cegueira e dos erros e das traições. Morre de doença e das feridas; morre de exaustão, das devastações...”   

(Anaïs Nin)




5 comentários:

  1. "Com honra morre, se não podes levar a vida honradamente."
    Madama Butterfly

    tragédia, solidão, desconfiança, presença que não se vai...
    Se não se vai algo ainda está vivo...
    O seppuku já foi cometido. Por favor.....
    Procure-o
    bjs

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  2. Uma vez eu já me questionei se dava para matar um amor... Matar, matar, eu acho que não dá, mas há um ponto sem retorno, uma vez passado esse ponto, ainda que o amor não morra, as perspectivas mudam, as forças crescem...

    Um belo texto sem dúvida alguma! A história, como tudo na vida, tem momentos bons e momentos não bons, mas isso é parte do jogo! ;-)

    Grande abraço.

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  3. “O amor nunca morre de morte natural. Ele morre porque nós não sabemos como renovar a sua fonte. Morre de cegueira e dos erros e das traições. Morre de doença e das feridas; morre de exaustão, das devastações...”

    Vivi algumas poucas rápidas paixões avassaladoras [alem do amor ao Elian] q eu jurava serem eternas ... mas simplesmente acabaram tb por não assumir algo q poderia ter sido assumido ... não vem ao caso por causa de quem ... passa o tempo e vem o fatídico dia de um reencontro ... e sempre a mesma coisa ... ansiedade, suor, angústia ... depois apecebemos q nada além de pó existe ... #fato ...

    Belíssima reflexão ...

    ps: desencana, acabou, virou pó [margot 02]

    Beijão

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  4. O que eu acho meio que virou um post(o). Mas resumindo: não se culpe pelo que foi, é, será nem desencane se não quiser. O encanamento é seu e você faz dele o que quiser. Se joga! Ou não!

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